mari e bokor relatam influência do autismo na carreira
Gabriela Bokor e Mariana "mari" Preste são jogadoras da Atrix e ambas já atuaram pela FURIA e têm passagem pela FURIA. Mas além disso, a dupla tem outra semelhança: as duas foram diagnosticadas com o Transtorno do Espectro Autista (TEA).
No fim de outubro, a dupla divulgou no X (antigo Twitter), que haviam sido diagnosticadas como autistas. As jogadoras conversaram com a Dust2 Brasil e falaram sobre como foi receber o diagnóstico final.
"Ao mesmo tempo que é esclarecedor por resolver muitas questões internas, que às vezes não tinham explicação da sua vida inteira, você passa por um processo de luto querendo ou não. Tinha muitas coisas no meu passado que eu me culpava, me achava estranha. Na escola, por exemplo, eu não conseguia ter contato visual e sempre me achei uma pessoa horrível por isso. Agora tudo faz sentido e sinto um pouco de pena da Gabizinha, quando eu era pequena", contou bokor.
Para mari, o processo foi mais longo. Ela lembra que já fazia tratamento psiquiátrico desde dezembro e, somente em abril, o médico foi mais incisivo e contou que acreditava que a jogadora se encaixava no espectro autista.
"Na hora deu aquele negócio no peito. O que a gente tem na nossa cabeça sobre o autista é algo muito estruturado de outras épocas. "Ah, o autista anda na ponta do pé, não consegue comer nada", e não é assim. São vários níveis. Fui para uma psicóloga específica para esse diagnóstico e tive oito semanas de testes intensivos para várias coisas, não só autismo."
Embora ambas jogadoras tenham sido diagnosticadas com autismo, elas divergem nas manifestações comportamentais. Para mari, seu maior incômodo diário está em ver mudanças mínimas no seu setup, por exemplo. "Se sair um milímetro do lugar, já fico desesperada", conta a jogadora, que também cita a aversão a sair da rotina.
"Deixar minha zona de conforto para mim é um tabu muito grande ainda, até hoje. Não gosto de multidão também, a Gabi (bokor) já saiu comigo para barzinho e eu colocava meu fone e ficava quieta no meu canto. Não gosto de interagir assim, lugares com música alta, essas coisas me fazem mal. A não ser que seja algo que eu goste muito, tipo um artista que sou fã", disse mari.
Já para bokor, sua maior aversão é com textura. "Quando eu era pequena, minha mãe não conseguia pentear meu cabelo porque eu chorava de dor com o toque. Imagina a sensação de você passar sua vida inteira pensando que você só é esquisita, que é fora da caixinha ou muito chata para algumas coisas, e de repente tudo tem uma explicação. Quando fui fazer o teste, eu não sabia o que esperar, se era melhor ser autista ou não. Explicou muita coisa da minha vida, então foi um alívio."
Influência do TEA no CS
As mudanças comportamentais sobre as jogadoras não são percebidas somente quando estão em lugares com som alto ou muitas pessoas perto. Ambas jogadoras relatam situações ingame que foram esclarecidas agora que são diagnosticadas com o TEA. No caso de bokor, ela vê até como um facilitador.
"O que eu mais reparei é que sou muito metódica dentro do jogo. Eu penso: "Vou startar o round, fazer isso, depois aquilo". Tenho que ter na minha cabeça certinho o que vou fazer e, assim, reparo muito no padrão do adversário. Se cai "meia" bomba diferente, rola uma flash num timing diferente, eu consigo perceber muito fácil que estão saindo do padrão. Tenho muita facilidade em ler o que o outro time está fazendo por conta disso, então me ajuda a ser capitã. É um lado bom que encontrei em ser neurodivergente."
Já mari lembrou de uma situação recente, na qual precisou trocar de posição em um mapa e se sentiu incomodada, até voltar ao local do mapa onde jogou nos últimos seis anos e voltou a se sentir confortável.
"Eu não conseguia jogar depois de trocar de posição porque estou há seis anos no mesmo lugar e troquei. Eu precisava conseguir, porém não conseguia, não me sentia confortável. Depois voltei para o meu lugar e deu aquele negócio bom no coração."
"Tenho muita coisa também com meu teclado, mouse e monitor, precisam estar em uma posição específica. Sofro com isso de sair da zona de conforto e isso às vezes impacta muito dentro do jogo. Quando esbarro no monitor e está próximo de um campeonato importante, eu mexo até achar a posição correta porque isso influencia no meu psicológico", continuou mari.
As jogadoras lembram também que já sentiram dificuldades de socialização em bootcamps, por estarem convivendo com muitas pessoas. Hoje no mesmo time, acreditam que a intimidade entre elas ajudará caso precisem ficar juntas pessoalmente.
"Para mim sempre foi muito difícil conviver com pessoas do meu time porque tenho dificuldade em me sentir confortável perto das pessoas. É exaustivo porque eu mascaro meus sintomas ou coisas que normalmente faria, para evitar sofrer algum tipo de comentário por causa disso. Não consigo ser eu mesma nesses ambientes. Já cheguei a ir embora de bootcamp, chorar, porque para mim era um pesadelo. Foram poucos em que me senti confortável", relatou bokor.
O relato de mari é parecido: "Sou uma pessoa muito reservada, preciso do meu espaço, preciso ficar sozinha. No meu último bootcamp, pela W7M, eu conversei com o Eudinho (gerente de operações) e o psicólogo Victor Hugo, para saber se tinha como eu ficar em um quarto sozinha. Eles atenderam e me senti muito mais confortável. Porém, quando não tinha essa possibilidade, já me tranquei no banheiro ou tomava banho para ficar meia hora sentada no chão refletindo. No entanto, com o nível de amizade do nosso time atual, se eu precisasse de espaço só falaria com elas e iriam entender, eu não seria julgada."
Psicóloga explica o TEA
A Dust2 Brasil conversou com Beatriz Berenguer Portela, graduada em Psicologia e pós-graduada em Análise do Comportamento Aplicada ao Transtorno do Espectro Autista. A psicóloga explicou as características do TEA.
"O TEA é um transtorno do neurodesenvolvimento, apresentando um conjunto de características específicas com foco principal em déficits persistentes na comunicação social e interação social, além da presença de padrões de comportamento, interesses ou atividades restritas e repetitivas", explica.
"As características podem não se manifestar até que seja necessário no contexto inserido, ou seja, uma pessoa com hipótese ou diagnóstico de TEA na fase adulta, ao reviver experiências da infância pode relembrar de comportamentos que surgiram apenas após determinado período (antes de entrar na escola não tinha dificuldades em se comunicar, mas ao entrar na escola com pessoas estranhas e encontrar desconhecidos na rua, começou a “perder a fala” e “ficar tímido”), ou vice-versa", continuou.
Pela profissão de jogadora profissional de CS, a rotina é bem estabelecida, com padrões diários como assistir demos e partidas profissionais, jogar DM, lobbies e mais. Portanto, mudanças pequenas na rotina tendem a representar momentos de ansiedade e estresse aos neurodivergentes.
"A rotina de alguém que compete e treina diariamente necessariamente envolve uma constância e padrão, seja na categoria que se estuda, no local em que treina, entre outros. Assim, a rigidez com mudanças para a pessoa com TEA é bem mais custosa se comparada com uma pessoa neurotípica, pois ser flexível a mudanças significa ser capaz de ter uma gama de habilidades que possam suprir demandas variáveis vindas de um contexto diferente daquele não planejado a priori."
"Com esta dificuldade exacerbada, pode influenciar em maiores momentos de ansiedade e estresse (dos quais são manifestados de diferentes formas) caso a rotina tenha muitas mudanças (mesmo que consideradas mínimas para outras pessoas), e necessitar de maior suporte de outros ao redor para compreender e lidar com situações estressantes. Visto isso, dificuldade em sair da rotina influencia diretamente em obter previsibilidade daquilo que irá acontecer para reduzir ansiedade/estresse, autoconhecimento para essas situações que possam gerar tensão (estratégias antecedentes), e habilidades de autoregulação para lidar com o estresse quando posto a uma situação estressante (estratégia consequente)", adicionou a psicóloga.
Outro ponto esclarecido por Berenguer é sobre o preconceito acerca do autismo, com a população apontando as neurodivergências como dificuldades na vida. A psicóloga explica porque essa visão é errada.
"Ver o TEA como algo dificultador traz uma visão errônea, pois refere-se à concepção de que indivíduos com o transtorno nascem com determinadas dificuldades, e todo o resto da sociedade não deve obter um papel de modificação do ambiente para a inclusão. A sociedade deve considerar as diferentes formas de aprendizagem, interações sociais e manifestações de comportamentos para moldar estruturas de ensino, suprimir estereótipos e repensar comportamentos que são impostos como normativos e a necessidade deles dentro da nossa sociedade atual", finalizou.